Nasce uma noite, acende um clarão
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Como um ato de liberdade, desde que o mundo é mundo, mulheres acendem fogueiras e fazem arte. Na jornada por seu livre-arbítrio, Ilka Lemos apresenta a individual “Nasce uma noite, acende um clarão”, partindo da imagem mística de uma fogueira, que clareia tanto a noite como as ideias de mulheres que se rebelam ao nascer da lua. Amparada pela imagem de Lilith, a primeira mulher segundo a história ocidental que habitou a Terra e soube dizer não, Ilka Lemos retoma sua vocação de artista, apresentando uma série de trabalhos desenvolvidos entre 2007 e 2024.
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Com curadoria de Nino Cais, a exposição enfatiza a produção mais recente da artista, por meio de um olhar sensível e acolhedor, que costura toda a mostra. Em suas palavras, “Ilka Lemos traz, em sua arte, a figura desta mulher que carrega o tempo passado e o tempo presente. Metaforicamente, ela é sua filha, mãe e avó, pois seu trabalho é um fazer contínuo para se erguer uma tocha que acende e revela”. Assim, o que vemos é um recorte muito apurado de uma vastidão de obras acendidas e ascendidas — sobretudo, nos últimos três anos.
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Homenageando e celebrando o ciclo de vida das mulheres de sua família, a artista apresenta uma série de retratos, tramados com linhas pretas sobre papel, como se o desenho bordasse o tempo das rugas de expressão que pousam sobre a pele. São trabalhos que compartilham o saber da vida marcado na pele, nas relações afetivas e no âmago do ser. Como se viessem ao mundo para nos lembrar daquilo que fazemos questão de esquecer: o corpo não é o mesmo de ontem e não será o mesmo amanhã.
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Fios vermelhos revelam imagens que se encontram alocadas nas entranhas. Coágulos são metáforas para os emaranhados de nós que, comumente, ficam presos na garganta. Libertos, eles saem numa espécie de jorro compulsivo da gestualidade; ora sobre a pele do papel, ora como malha e barbante — ocupando o espaço. Nessas duas séries de trabalhos, é possível sentir o pulsar do gesto da artista. A mão toca, desenha, rasga, trança e cria formas, para falar sem utilizar palavras.
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Essa mesma mão também imprime a escrita corpórea da artista sobre a matéria moldável da argila. Pois, quanto mais se observa, mais se nota a presença que habita a força do gesto. O gesto, ele é o maior aliado de Ilka Lemos; é por meio dele que ela é capaz de criar um oceano que caiba em suas mãos, entre seus dedos. Esmaltados com uma tinta brilhante, suas cerâmicas trazem imagens orgânicas, adornadas por uma camada pictórica esteticamente sintética. Curiosamente, esta relação entre esmaltação sintética e imagens orgânicas também é replicada nas paisagens amazônicas. Uma vez mais, observa-se o esmalte como um sintoma do gesto, da mão e da força da artista.
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Por fim, cadeiras vazias anunciam a falta de alguém, ou melhor, da avó de Ilka Lemos. O que se tem, agora, é a memória desta avó que completou seu ciclo de vida e que chega, até nós, através de sua ausência. Ou melhor, pela saudade que a artista tem de um tempo que não volta. Por uma livre interpretação poética, a ausência da avó remete, também, aos tempos de criança da artista — que, agora, simbolicamente, passa a sentar-se nessas cadeiras. Não à toa, a tapeçaria que recebe o desenho da cadeira vem da casa da filha da artista; que, por sua vez, também é mãe de uma menina. É possível interpretar que esta cadeira vazia aponte para a sequência de mulheres, na genealogia de sua família, numa vontade de se fazer matriarcal.
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O que vemos não é apenas a capacidade de levar adiante uma produção artística capaz de transitar por tantas técnicas, como pintura, desenho, escultura, fotografia e instalação. É, sobretudo, a coragem de falar sobre assuntos que são tão caros à nossa sociedade, como o envelhecer. Trata-se de encarar o tempo, com a consciência de que tudo lhe é imanente. De olhar-se no espelho e se deparar com o passado e, concomitantemente, com o futuro.
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Assim, com uma intensa e pulsante produção, Ilka Lemos se junta ao coro das vozes de tantas outras artistas que fazem ecoar, ainda hoje, as palavras da importante pintora impressionista Berthe Morisot (1841-1895): “só conseguirei minha independência por meio da perseverança e manifestando abertamente minha intenção de me emancipar”. Portanto, não há dúvida de que esta exposição seja um divisor de águas na biografia de Ilka Lemos, marcando seu retorno artístico profissional e seu compromisso pessoal com a perseverança.
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Paula Borghi
São Paulo, março de 2024